18 março, 2012




Fico Sozinho com o Universo Inteiro
 
Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro andar...
Não oiço já passos no segundo andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir...

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! —
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dóí-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

04 março, 2012






Os Caminhos Desapareceram da Alma Humana
 
Caminho: faixa de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada distingue-se do caminho 
não só por ser percorrida de automóvel, mas também por ser uma simples linha ligando 
um ponto a outro. A estrada não tem em si própria qualquer sentido; só têm sentido os
 dois pontos que ela liga. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho
 é em si próprio dotado de um sentido e convida-nos a uma pausa. A estrada é uma 
desvalorização triunfal do espaço, que hoje não passa de um entrave aos movimentos do
 homem, de uma perda de tempo.    
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: 
o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua 
vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo 
de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa 
ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso 
ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.

Milan Kundera, in "A Imortalidade"